Endofibrose da Artéria Iliaca: o “calcanhar de Aquiles” dos ciclistas
Muito se fala e escreve sobre diversas patologias que surgem associadas ao desporto. Quase todas elas têm em comum o comprometimento essencialmente de estruturas neuro musculo esqueléticas (tendão, ligamento, músculo, articulação, osso, nervo), no entanto pouco ênfase se dá às estruturas arteriovenosas que são responsáveis pela “alimentação” de toda a máquina neuro muscular.
As estruturas vasculares, mais especificamente as artérias, podem ver a sua função comprometida devido a diversos fatores, originando patologias muitas vezes mais incapacitantes e de maior dificuldade de diagnóstico do que as estruturas neuro musculo esqueléticas.
A endofibrose da artéria ilíaca é um desses casos que iremos abordar ao longo deste artigo, uma vez que ainda está subdiagnosticada no nosso país e importa sensibilizar os atletas e profissionais que os acompanham para esta patologia.
Nos utentes jovens, desportivas, com queixas de dor no membro inferior ou impotência funcional para o exercício, mesmo que estes não possuam fatores de risco para patologia arterial, a possibilidade de doença arterial obstrutiva, como é o caso da endofibrose, deverá ser tida em consideração. Esta patologia foi até hoje mais frequentemente observada em ciclistas, mas também pode ocorrer em outras atividades como é o caso dos maratonistas, atletas de triatlo, jogadores de rugby e de futebol, patinadores de velocidade, esquiadores e culturistas.
Neste artigo, iremos dar ênfase sobretudo ao que ocorre com maior prevalência nos ciclistas, no entanto podemos desde já afirmar que todas estas modalidades embora ocorram em meios completamente diferentes e que à primeira vista não pareçam ter nada em comum, há algo que as une, especialmente nos seus gestos técnicos: o movimento de flexão da anca repetido e com potência.
O uso da bicicleta tem tido um crescimento exponencial nos últimos anos, seja para uso competitivo, como para condicionamento físico, lazer ou meio de transporte. No entanto, é nos atletas que surge maior predisposição para endofibrose da artéria ilíaca uma vez que andam muito próximo do limiar do treino de alto rendimento e o sobretreino, com a agravante da postura na bicicleta e a técnica de pedalar poderem ser inadequadas.
Segundo a literatura um em cada 5 ciclistas de elite apresentam limitação do fluxo sanguíneo nas artérias ilíacas, sendo por norma a artéria ilíaca esquerda mais comprometida do que a direita. Entre os ciclistas diagnosticados com endofibrose da artéria ilíaca externa, é possível observar que a prática de treino anual varia de 5.000 km a 33.000 km, sendo que os sintomas, segundo os casos relatados, podem surgir após terem acumulado distância que varia de 50.000 km a 380.000 km.
Quais são os sintomas de alerta de uma endofibrose?
Os sintomas são variáveis de acordo com os atletas e com a gravidade e a cronicidade da lesão, mas a maioria reporta dor desde a região glútea até ao joelho, sensação de diminuição de força muscular e membro preso, cãibras e por vezes dormência.
Estes sintomas inicialmente surgem sobretudo em esforço, mas alguns permanecem em repouso, onde se inclui também a claudicação intermitente.
Mas porque ocorre a endofibrose da artéria ilíaca?
As artérias são os vasos que transportam o sangue oxigenado para todos os tecidos do corpo. Neste caso, as artérias ilíacas externas são o principal canal de suprimento de sangue para os músculos dos membros inferiores.
A endofibrose desta artéria origina uma restrição do fluxo sanguíneo que pode ocorrer essencialmente por uma torção da artéria e por uma diminuição do seu calibre, como iremos explicar abaixo. Em qualquer um dos cenários, o fluxo sanguíneo para o membro inferior é reduzido, o que diminui o fornecimento de oxigénio para os músculos, provocando o aparecimento dos sintomas.
O processo de endofibrose caraterizado pelo espessamento progressivo da parede arterial localiza-se, na maioria dos casos, na artéria ilíaca externa, no entanto pode ocorrer também na ilíaca comum, femoral ou femoral profunda.
Isto pode ocorrer por uma combinação de mecanismos internos e externos: a postura na bicicleta durante muito tempo e com cargas elevadas de treino, combinado com alto débito cardíaco, hipertensão arterial e fluxo sanguíneo turbulento.
A hiperflexão da anca no movimento e postura do ciclista, associado a uma compressão da artéria pela hipertrofia do músculo psoas e ligamento inguinal são uns dos responsáveis pela diminuição do fluxo sanguíneo. Com o aumento do fluxo associado e da pressão arterial que ocorre em esforços submáximos e máximos, esse fluxo associado à torção e compressão da artéria, provoca uma colisão do sangue contra a camada interna da parede da artéria, resultando numa lesão da mesma e consequente resposta endofibrótica.
Alguns estudos indicam ainda que uma das razões apontadas em cima, a hipertrofia do músculo psoas, agrava com a utilização do pedal de encaixe, uma vez que nestes casos ocorre uma força cíclica para puxar o pedal, provocando ainda mais resistência no movimento de flexão da anca.
Como é feito o diagnóstico?
O diagnóstico destes casos ocorre na maioria das vezes tardiamente devido ao facto de inicialmente suspeitar-se sempre de uma lesão musculo esquelética. No entanto, com o agravamento de sintomas, começam a realizar-se exames mais pormenorizados como é o caso do ecodoppler dos membros inferiores, que normalmente apresenta nestes casos uma redução significativa do índice tornozelo/braço. A presença de endofibrose torna-se, assim, numa das possibilidades de diagnóstico que mais tarde com angiotomografia pode vir a ser confirmada.
Outra forma de diagnóstico pode ser através de um teste de provocação de sintomas, com um cicloergómetro em teste de esforço máximo monitorizando o índice acima referido.
A endofibrose tem tratamento? Como podem os ciclistas prevenir que apareça?
O tratamento depende dos fatores de gravidade da lesão, porém o tratamento conservador deve ser sempre o inicialmente recomendado antes da necessidade de procedimento cirúrgico.
No tratamento conservador, destacamos a importância da Fisioterapia e Osteopatia, que permitem ao atleta por um lado avaliar e reeducar o seu posicionamento na bicicleta bem como o seu gesto técnico, e por outro equilibrar as estruturas musculo osteo tendinosas de modo a diminuir a pressão sobre a artéria ilíaca externa, bem como intervir sobre a mesma com técnicas não invasivas.
Este procedimento no processo de recuperação é também utilizado como forma de diminuir a probabilidade de ocorrência desta patologia, uma vez que um ciclista mais apto, mais equilibrado, mais eficiente durante o seu gesto técnico e com uma melhor relação no binómio ciclista-bicicleta, permite diminuir a sobrecarga sobre a região da artéria ilíaca externa e, consequentemente, diminuir a probabilidade de ocorrência de lesão.
Por fim, salientar que um processo de endofibrose num dos membros leva consequentemente a uma sobrecarga do membro oposto, por fadiga precoce e dor do membro lesado, podendo nestes casos também, com o prolongar da situação, proporcionar o aparecimento de lesões, de caráter musculo esquelético, no membro oposto.
Referências Bibliográficas:
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Autor:
Dr. Bruno Ferreira